É POSSÍVEL HAVER RESPONSABILIDADE CIVIL NA REQUISIÇÃO ADMINISTRATIVA DE PRODUTOS PARA A SAÚDE?
- observatoriojuridico
- 3 de ago. de 2020
- 8 min de leitura
A requisição administrativa surge com a constituição federal de 1988, sendo escrita nos seguintes temos:
Art 5º, XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;
Todos as pessoas já viram em alguns filmes, principalmente nos estadunidenses, o policial requisitar o carro do cidadão para perseguir o criminoso. Legalmente, esta situação é perfeitamente possível no Brasil, caso a autoridade policial necessite perseguir uma pessoa que acabou de cometer um crime, por exemplo.
Apesar da situação heroica descrita acima, o presente artigo visa tratar a respeito de dois requisitos, iminente perigo público e a assegurada indenização ulterior, principalmente nos tempos de COVID-19. Sendo assim, antes de tratar especificamente sobre a questão da possibilidade ou não da responsabilização civil decorrente da requisição administrativa em época de pandemia, é de suma importância, compreender os institutos aqui trabalhados.
Sendo assim, o artigo anteriormente citado trata sobre a requisição administrativa que é um ato normativo unilateral e auto-executório que consiste em requisitar bens ou serviços de particulares em prol do interesse público. Porém, para que essa requisição seja possível é imprescindível a caracterização de “iminente perigo público”, expressão que pode ser definida como uma situação que tem grande potencial lesivo, isto é, que pode causar sérios danos para a população.
Ademais, o artigo menciona que constitucionalmente está assegurada ao proprietário indenização ulterior, ou seja, aquele que tiver algum bem ou serviço requisitado deverá receber o valor referente ao produto disponibilizado à Administração. Os questionamentos que se instalam sobre essa questão são os seguintes: Apesar de existir uma disposição legal para a requisição administrativa, será que ela é, de fato, a melhor saída para esse tipo de conflito? E ainda, é possível haver responsabilização civil diante da requisição administrativa de bens e serviços de saúde?
Nessa questão encontram-se duas vertentes: de um lado está o proprietário que vende os produtos de saúde e que utiliza os lucros da sua empresa como fonte de renda para sustento familiar. De outro está o Estado que precisa dar subsídios aos hospitais que carecem de materiais para tratamento dos doentes. A grande questão instalada é a época pandêmica vivenciada e até que ponto ela pode alterar as relações e as negociações dessas duas vertentes.
Questiona-se, portanto, se a medida mais adequada seria fazer um contrato com o proprietário das empresas que comercializam esses bens para que ambos possam se beneficiar com a compra e venda dos produtos, ainda que em tempo de pandemia, ou se, por ser uma situação extraordinária, seria necessário fazer essa requisição administrativa com a promessa de um pagamento posterior?
Nesse sentido, há uma jurisprudência que decidiu inicialmente a favor do empresário no interior de São Paulo. A Prefeitura de São Roque realizou a requisição administrativa de todos os leitos de UTI de um hospital particular que abriu em fevereiro de 2020. Após a Prefeitura requisitar os leitos, o empresário entrou com um mandado de segurança, que inicialmente teve a tutela provisória negada.
Após isso, no agravo de instrumento de número 2071631-72.2020.8.26.0000, o TJ-SP concedeu a tutela pretendida no dia 28 de maio, dando o prazo de cinco dias úteis para que a prefeitura procedesse com a devolução de todos os equipamentos requisitados, e estabelecendo multa diária de mil reais em caso de descumprimento da decisão.
Não acatando a decisão, a prefeitura ajuizou uma suspensão de tutela provisória no STF e teve o pedido concedido pelo Ministro Dias Toffoli em 24 de junho. O ministro, em sua fundamentação, considerou que “também, nessa decisão, i) que é incontroverso, na origem, que o Decreto municipal nº 9.228/2020 foi publicado na imprensa oficial em 31/3/2020, antecedendo, portanto, a data prevista para início de funcionamento do atendimento hospitalar no nosocômio privado (1º/4/2020)” (Retirado da STP 192/SP).
O ministro cita ainda em sua fundamentação que a prefeitura admitiu publicamente que não possui instalações adequadas e muito menos equipe capacitada para operar os equipamentos requisitados, e que após um paciente de UTI ser transferido para a Santa Casa de São Roque (o hospital municipal de referência) teve de ser transferido para Socoraba, vindo a óbito.
Verifica-se que este é um período delicado tanto para o poder público, quanto para os hospitais privados, devendo ambos se mobilizarem para evitar ainda mais mortes decorrentes do coronavírus, devendo existir certa cautela na utilização da possibilidade de requisição administrativa para que não cause ônus excessivo para uma das partes.
O que se percebe, no caso citado, é que a responsabilidade civil fora momentaneamente afastada na relação entre o poder público com os entes privados. A devolução dos equipamentos, de fato, ocorre, mas não há indenização por dano moral ou por lucros cessantes encontrados na presente pesquisa.
A responsabilidade Civil do Estado (que engloba tanto as pessoas jurídicas de direito público como as pessoas jurídicas de direito privado que estavam prestando serviços ao Estado em um determinado momento) é um tema que apesar de pouco discutido, pode ganhar notoriedade após o período de pandemia, haja vista que os entes privados possivelmente passarão a buscar maneiras de reparar os diversos danos que sofreram diante das possíveis abusividades do poder público. Ademais, são várias perguntas que não se resumem apenas na relação entre entes públicos e privados, mas entre entes federativos entre si, como será visto a seguir.
O conflito federativo na requisição administrativa
Durante a pandemia, vimos também um crescente aumento nas requisições administrativas por parte da União. O Maranhão, por exemplo, como amplamente divulgado na mídia, passa por um momento de calamidade na crise sanitária, com aproximadamente 3 mil mortos no dia de hoje (28/07/2020). Mesmo assim, o Governo Federal fez uma requisição administrativa contra uma empresa ordenando que esta enviasse 68 respiradores para que a União desse a devida aplicação.
Contudo, a PGE-MA entrou com uma Ação Cível Originária contra a União, alegando que os respiradores requisitados pela união eram objeto de contrato firmado entre o Estado do Maranhão e a empresa supracitada. Na inicial, os representantes do Estado do Maranhão argumentam que a autonomia dos entes federativos impede que a União assuma, mediante simples requisição administrativa, o patrimônio, o quadro de pessoal e os serviços de outro ente público.
Sendo assim, o decano Celso de Mello decidiu favoravelmente ao Estado do Maranhão, argumentando no final da fundamentação que “Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito – como o direito à vida e à saúde – se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional.”
Apesar da fundamentação do Ministro, alguns juristas discordam do posicionamento. Isto porque, de acordo com o Art. 1226 do Código Civil, os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição (a tradição é a transferência, de fato, efetuada). Nos dois casos, o objeto requisitado não era de posse dos requerentes.
Trazendo um outro exemplo, tal decisão serviu como norte para demais tribunais no país. Logo no dia seguinte a decisão, em 21 de abril de 2020, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concedeu liminar a Prefeitura da Capital para que 80 ventiladores mecânicos fossem entregues, preterindo a requisição administrativa efetuada pelo Estado do Rio de Janeiro.
Esta foi inclusive a fundamentação utilizada pela Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro para derrubar a liminar 7 dias depois [4]. A decisão proferida pela 15ª Vara Especializada da Fazenda Pública do Rio de Janeiro argumentou que o contrato fora oferecido em 5 de dezembro de 2019, e em 3 de março de 2020, a SMS emitiu a nota de empenho nº 2020/567, teoricamente vinculando a empresa na obrigação de fazer.
O prazo para a emissão da nota de empenho expirou em 05 de fevereiro de 2020, nos termos da Lei nº 8.666/1993, a lei das licitações, que assinala em seu Art. 64 § 3º que Decorridos 60 (sessenta) dias da data da entrega das propostas, sem convocação para a contratação, ficam os licitantes liberados dos compromissos assumidos. Verificou-se ainda que a PGM-RJ requisitou até mesmo a apreensão Judicial dos respiradores, pedido indeferido pelo juízo da 15ª Vara.
Tal conflito foi experimentado também no Estado de Mato Grosso, na Ação Originária Cível 3393, proposta pela PGE no dia 30 de abriu de 2020 [5]. A ação tinha como objetivo suspender o efeito dos ofícios nº 43/2020/CGIES/DLOG/SE/MS e nº 78/2020/DLOG/SE/MS sobre os respiradores destinados a Mato Grosso, que continham a requisição proposta pelo Governo Federal. Logo no dia seguinte, o ministro Luís Roberto Barroso suspendeu os efeitos dos ofícios e determinou que a empresa Magnamed Tecnologia Médica S.A. fornecesse os 50 ventiladores pulmonares comprados pelo Governo de Mato Grosso.
Voltando na discussão mencionada há pouco tempo atrás, em sede de contestação, a União afirmou que a requisição não teria recaído sobre bens públicos, já que a propriedade móvel se transfere com a tradição (art. 1.226 do Código Civil); que a requisição dos ventiladores pulmonares se inseriria em estratégia para centralizar o estoque desses equipamentos no Ministério da Saúde, com vista a serem distribuídos aos demais entes públicos na medida de suas necessidades, evitando a concentração por aqueles com maior poder econômico; e que teria excepcionado da requisição inicial apenas os equipamentos cujo processo de aquisição por entes públicos já havia sido concluído, não sendo esse o caso do Estado do Mato Grosso. [6]. Contudo, em seguida a PGE-MT sustentou que a requisição seria inválida, já que teria por objeto bens juridicamente destinados a pessoa jurídica de direito público. Tese essa acolhida pelo pleno do STF no referendo na medida cautelar na ação cível originária 3393.
Logo após a decisão favorável no STF, a Magnamed foi notificada extrajudicialmente pela Procuradoria de MT a respeito da decisão, solicitando que os produtos fossem entregues. Não obstante, teve como resposta que “infelizmente não há contrato formal e válido para compra e venda de ventiladores pulmonares entre a Magnamed e o Estado do Mato Grosso” e “Em que pese a assertividade desta Secretaria quanto à interpretação de que a decisão do Exmo. Min. Relator, datada de 27.5.2020, nos autos da ACO, imporia a imediata entrega dos ventiladores pulmonares pela Magnamed para o Estado do Mato Grosso, a Magnamed entende que a referida decisão é obscura a esse respeito.” Após a resposta, a Procuradoria de Mato Grosso ajuizou uma ação declaratória de existência e validade de relação jurídica e condenatória a obrigações de fazer/entregar e não fazer c/c pedido de tutela provisória de urgência na 5ª Vara Especializada da Fazenda Pública de Cuiabá. [7]
Sendo então concedida a liminar, interessante pontuar alguns posicionamentos do Exmo. Dr. Roberto Teixeira Seror, em relação a primeira alegação, determinou que os equipamentos fossem entregues e instalados no prazo de 5 dias úteis, com uma astreinte de R$ 100.000,00 (Cem mil reais). Já em relação a segunda alegação supracitada, fora respondida com “?????”, visto que havia um contrato formalmente assinado em abril.
Na contestação juntada em 17 de julho de 2020, a Magnamed alegou basicamente a ilegitimidade do preposto, intempestividade da emissão da nota de Empenho e que o prazo ainda não se exauriu (considerando que ele findará no dia 03/08/2020), buscando se desvencilhar da astreinte fixada pela 5ª Vara. Os autos encontram-se parados desde o dia 17 de julho e convido o presente leitor (a) a acompanhar o final dessa história.
Em síntese, existem três grandes conflitos de interesses a todas as lides presentes no texto se tratando de conflito entre entes federativos: O requerente, o requerido e a empresa. Tomando como exemplo esta última, o conflito entre o Mato Grosso e a União, Mato Grosso busca sanar os problemas relativos a sua própria esfera. Governador algum se felicita em ver seus governados passando por necessidades, com falta de insumos ou equipamentos, e quer resolver a situação da maneira mais ágil possível. Na mesma seara, assim também pensa o Ministério da Saúde. Alguns Estados simplesmente não possuem caixa suficiente para comprarem os insumos adequados, e como o Ministério da Saúde é responsável por todo o país, tem os dados de qual Estado está com o maior número de mortes e menor número de equipamentos, e buscará meios para mitigar o número de vítimas ou de casos.
Pois bem, a requisição administrativa tem sido utilizada por alguns entes públicos no atual cenário pandêmico vivenciado e, diante das requisições feitas, levanta-se o questionamento sobre a possibilidade de uma responsabilização civil da administração. Não existe consenso jurisprudencial sobre o assunto, todavia, o direito deve sopesar a necessidade da aplicação do instituto legal da requisição administrativa em situações excepcionais (art. 5º, VII, CF), bem como a eventual responsabilidade civil decorrente dos possíveis abusos dessa prática.
REFERÊNCIA:
1- Processo PJE 0000027-13.2020.8.17.2530
4- https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-04/justica-derruba-liminar-para-entrega-de-respiradores-ao-rio-de-janeiro e https://monitormercantil.com.br/justica-derruba-liminar-para-entrega-de-respiradores-ao-rio
5- http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5901154 a ACO também está disponível no PJE sob o número 1028680-71.2020.8.11.0041
7- Doc. ID 33854295, autos 1028680-71.2020.8.11.0041
Comentarios