A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO DIANTE DOS RISCOS DE DANOS AOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE
- observatoriojuridico
- 28 de set. de 2020
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Diante do advento do novo coronavírus (SARS-CoV-2), o sistema mundial de saúde foi submetido ao desafio de assegurar o combate ao COVID-19. Frente ao panorama apresentado pela doença, como a alta taxa de infecção e a elevada demanda por recursos médicos e hospitalares, os efeitos gerados são nítidos: a falta de leitos, insuficiência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) aos profissionais da saúde e os riscos que estes enfrentam.
A exposição à doença por parte dos profissionais da saúde é evidente no atual contexto. O contato direto entre o paciente infectado e aquele designado a cuidar já configura relação de alto risco de infecção em condições que ambas as partes utilizam os equipamentos de proteção e os recursos necessários para o cuidado do enfermo [1]. Todavia, tal situação caracterizada como o mínimo necessário para a segurança do profissional da saúde não é a realidade.
De acordo com a Associação Médica Brasileira, em atualização feita no dia 11/09, houve 3.919 denúncias sobre a falta de EPIs para os profissionais da saúde que estão atuando na linha de frente [2]. Em Cuiabá/MT, cerca de 15 unidades de saúde encontram-se com carência em, no mínimo, 3 equipamentos. Tais equipamentos são: máscara tipo N95, óculos ou face Shield, luvas, gorros, capote impermeável, álcool em gel 70% e outros.
Além da ausência de recursos necessários para a proteção dos profissionais da saúde, cabe ressaltar que os equipamentos, quando fornecidos, diversas vezes não são acompanhados pela qualidade devida para a sua finalidade, a segurança [3].
Outro viés importante de ressaltar é a ausência de previsão e planejamento, por parte dos poderes executivos, para lidar com a situação atual. Os avisos feitos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre uma possível pandemia [4], antes da doença manifestar-se no Brasil, destaca a ausência de preparo do país para lidar com a situação e mitigar os problemas que atingiram as a população, principalmente os profissioanais da saúde.
Assim, diante da negligência por parte dos empregadores, o qual é responsável por fornecer o EPI adequado e orientar o trabalhador quanto ao seu uso (NR 06), e a ausência de equipamentos qualificados para a proteção do profissional da saúde, o Brasil configura-se como um dos países com mais mortes de profissionais [5]. Outrossim, de acordo com dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, a cada um minuto, 1 profissional da saúde é infectado. Mormente, cerca de 258 mil profissionais de saúde foram infectados desde o início da pandemia e outros 226 profissionais morreram.
Além desses fatores, há a sobrecarga de trabalho, o ambiente de alto risco, o desgaste psicológico e físico, longas horas de plantão, a falta de treinamento e preparo para lidar de uma forma melhor com a pandemia, a precariedade da própria instituição hospitalar, as quais muitas sofrem com a falta de ventilação e exaustão adequados para proporcionar maior segurança dentro do recinto.
Diante desse cenário que os profissionais da saúde enfrentam, questiona-se a atuação do Estado como órgão responsável por garantir os direitos fundamentais de seus cidadãos, como os médicos, enfermeiros e outros trabalhadores da saúde que atuam na linha de frente no combate ao coronavírus. Afinal, o Estado deve ser responsabilizado por omissão nesses casos em que há a falta de EPIs e condições de trabalho inadequadas?
De acordo com a teoria do risco administrativo vigente no direito civil brasileiro, a responsabilidade civil do Estado é objetiva, ou seja, dispensa a comprovação de culpa. Apesar das divergências doutrinárias em relação aos casos em que há omissão por parte do Estado, é possível citar o seguinte entendimento por parte do STF: "A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão" (STF, RE 109.615, Min. Celso de Mello, DJ 02-08-96).
Assim, para que a responsabilidade seja configurada e, por conseguinte, o dever de indenizar, é necessário cumprir os seguintes requisitos: os danos causados pelo Estado, o nexo de causalidade e a conduta, seja ela comissiva ou omissiva, da pessoa jurídica de direito público ou privado prestadora de serviço público. Outrossim, é imperativo que a relação entre a inação e o dano sofrido pela vítima tenha caráter direto e imediato e que tal omissão configure dever legal do Estado em agir. Dessa forma, entende-se que o Estado responde sem culpa, exceto diante de casos em que é possível afastar o nexo de causalidade (caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima).
Frente às novas tendências que surgem no estudo da responsabilidade civil do Estado, é necessário comentar sobre a possibilidade de indenização aos profissionais da saúde.
Diante da situação em que o Estado, na figura do hospital público, tem a obrigação de disponibilizar Equipamentos de Proteção de Individual em quantidade e qualidade suficientes para a segurança de todos os profissionais da instituição e tal dever não é cumprido integralmente, resta configurado omissão específica por parte do Estado.
A fim de complementar tal pensamento sobre a responsabilidade civil do Estado, o jurista Felipe Braga Netto menciona que: "a ausência da observância de medidas prévias e razoáveis de cuidado e proteção pode responsabilizar civilmente o Estado, havendo dano." [7]
Na hipótese em que o Estado (hospital público) disponibiliza os equipamentos corretos e orienta o profissional quanto ao seu uso, bem como fiscaliza a utilização correta, não é possível alegar omissão. Isto é, o nexo de causalidade estaria afastado pois o Estado atuou de forma a assegurar a proteção do cidadão e o risco seria atribuído à atividade desenvolvida.
O viés moderno ilustra que o Estado assume o papel de não apenas restituir a vítima à situação anterior ao dano, mas também agir de forma preventiva à ocorrência de tal acontecimento e mitigar as possibilidades de risco. Ou seja, cabe ao Estado não só ausentar-se de violar os direitos fundamentais dos cidadãos, bem como proteger tais direitos e garantir a sua permanência com o mínimo de riscos.
Assim, a partir desse paradigma em que o Estado atua de forma mais responsável e assume a função de prevenir os riscos de danos aos cidadãos, será possível vislumbrar o princípio da proteção e o estado de garantia dos direitos fundamentais.
REFERÊNCIA:
[1] Critical preparedness, readiness and response actions for COVID-19. [acessado em 21 de novembro. 2020]: https://www.who.int/publications/i/item/critical-preparedness-readiness-and-response-actions-for-covid-19.
[2] FALTAM EPIs EM TODO O PAÍS. [acessado em 21 de novembro. 2020]: https://amb.org.br/epi/
[3] Rational use of personal protective equipment for coronavirus disease (COVID-19) and considerations during severe shortages. [acessado em 21 de novembro. 2020]: https://www.who.int/publications/i/item/rational-use-of-personal-protective-equipment-for-coronavirus-disease-(covid-19)-and-considerations-during-severe-shortages
[4] LINDE, PABLO. OMS pede ao mundo que se prepare para uma “potencial pandemia” por coronavírus. [acessado em 21 de novembro. 2020]: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-02-24/oms-pede-ao-mundo-que-se-prepare-para-uma-potencial-pandemia-por-coronavirus.html
[5] Em três meses, quase triplica o número de mortes de profissionais da enfermagem no Brasil. [acessado em 21 de novembro. 2020]: http://mt.corens.portalcofen.gov.br/em-tres-meses-quase-triplica-o-numero-de-mortes-de-profissionais-da-enfermagem-no-brasil_14721.html
[6] LOPES, RAQUEL. A cada minuto, 1 profissional de saúde é infectado por Covid-19 no Brasil. [acessado em 21 de novembro. 2020]: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/a-cada-minuto-1-profissional-de-saude-e-infectado-por-covid-19-no-brasil.shtml
[7] BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Coronavírus e deveres estatais: o perfil dos novos tempos. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson; DENSA, Roberta. (Coords.). Coronavírus e responsabilidade civil: impactos contratuais e extracontratuais. Indaiatuba: Foco, 2020, p.235 - 247.
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