A PANDEMIA E AS EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE
- observatoriojuridico
- 14 de set. de 2020
- 6 min de leitura
Os primeiros casos de Covid-19 foram noticiados em uma cidade do interior da China e o que aparentava ser apenas um surto, em poucos meses, alcançou proporções mundiais, tornando-se uma das maiores pandemias da história da humanidade. No Brasil, como é de conhecimento geral, não está sendo diferente. Nesse sentido, o direito civil em suas mais variadas vertentes tem sofrido os impactos das incertezas desse período. Frente a isso, a seguinte dúvida tem sido levantada: Seria a pandemia uma causa de excludente de responsabilidade contratual, especialmente pela possível caracterização como caso fortuito ou força maior?
Para responder essa questão, faz-se necessário compreender, em primeiro lugar, o que são as causas excludentes de responsabilidade e qual é o tratamento civil dos institutos do caso fortuito e força maior, para em seguida, verificar se a pandemia se enquadraria nos critérios presentes no código civilista. Sendo assim, de acordo com Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, as causas excludentes de responsabilidade civil “devem ser entendidas como todas as circunstâncias que, por atacar um dos elementos ou pressupostos gerais da responsabilidade civil, rompendo o nexo causal, terminam por fulminar qualquer pretensão indenizatória.” [1]
Fazendo o raciocínio inverso, para que uma pessoa possa ser responsabilizada civilmente, é necessário cumprir alguns requisitos, são eles: (i) a conduta, sendo ela uma ação ou uma omissão, (ii) a materialização de um dano gerado a vítima, (iii) o nexo de causalidade, que é justamente a demonstração de que a referida conduta foi responsável por causar o dano. Nos casos de responsabilidade subjetiva, existe ainda o requisito da presença da culpa, seja pela intenção proposital ou por negligência, imprudência ou imperícia que gerou aquele dano. Nesse sentido, o rompimento do nexo causal é uma forma de excluir a responsabilidade civil.
Dentre as hipóteses de exclusão da pretensão indenizatória previstas no Código Civil, existe o instituto do caso fortuito e a força maior, conforme se vê abaixo:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir
A partir desse artigo, vários doutrinadores se propuseram a tentar diferenciar o caso fortuito e a força maior. A título de exemplo, pode-se citar o entendimento da Maria Helena Diniz, ao afirmar que, na força maior, o motivo ou a causa que dá origem ao acontecimento é conhecido, por se tratar de fato da natureza, como um raio, inundação. Já o caso fortuito, seria o acidente que causa o dano que advém de causa desconhecida, como a explosão de uma usina. [2] Doutra quadra, coloca-se a posição dos autores Flávio Tartuce e Pablo Stolze, os quais defendem que força maior seria um evento previsível, porém inevitável e o caso fortuito seria um evento totalmente imprevisível. [3]
De qualquer maneira, essa distinção é meramente teórica, uma vez que o Código trata os dois institutos da mesma maneira, ou seja, sendo caso fortuito ou força maior, o efeito será idêntico: impedir a configuração da responsabilidade em alguns casos em que a parte não consiga adimplir de forma parcial ou total uma obrigação. [4]
De acordo com entendimento do STJ, para que seja caracterizada a excludente de responsabilidade por força maior ou caso fortuito é fundamental atender os seguintes pressupostos: (i) existência de fato que torne absolutamente impossível o cumprimento da obrigação (necessidade); (ii) ausência de meios possíveis para evitar os seus efeitos (inevitabilidade); e (iii) não decorrer dos riscos esperados da atividade empresarial desenvolvida, o que é chamado de fortuito interno. [5] Posto isso, verifica-se que a pandemia do coronavírus pode se enquadrar, em algumas situações, como uma hipótese de força maior ou caso fortuito.
Vale ressaltar que a resposta dessa questão não deve ser entendida de forma generalizada, uma vez que assumir abstratamente que deverá ser excluída a possibilidade de responsabilização, nos termos do art. 393 do Código Civil, de todos os contratos e obrigações que estão vigentes em época pandêmica é um grande erro e ensejaria uma profunda instabilidade jurídica e social quanto aos compromissos assumidos pelas partes.
Isso porque, independente dos desafios decorrentes da atual crise sanitária, os princípios da boa-fé objetiva e do pacta sunt servanda devem ser sempre observados, tendo como regra, a manutenção dos contratos e dos compromissos assumidos. Sob esse prisma, deve-se aceitar em caráter excepcional e fundamentadamente comprovada a aplicação da pandemia como causa excludente de responsabilidade, devendo ser obrigatório a comprovação do nexo causal entre os desdobramentos da crise sanitária e a impossibilidade de cumprimento da obrigação no tempo, lugar ou na forma pactuada.
Feitas essas ponderações, serão apresentadas duas exceções à aplicação da excludente de responsabilidade: os casos em que devedor está em mora e o chamado caso fortuito interno. A primeira situação está prevista no art. 399 do Código Civil, o qual dispõe que “o devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada”.
No que tange a segunda exceção, nota-se que é uma definição construída pela doutrina e aceita pela jurisprudência, a qual demonstra que nem todo evento inevitável exime o devedor de sua responsabilidade de reparação dos danos. Sendo assim, caso fortuito interno seria a hipótese em que o evento é inerente aos negócios do devedor, isto é, são os riscos empresarias da própria atividade e, tendo configurado tal fato, exclui-se a possibilidade de exoneração de responsabilização do inadimplente.
Nesse diapasão, o presente texto citou que a pandemia do coronavírus pode, a depender do caso concreto, ser considerada um caso ser classificada como um caso fortuito ou uma força maior com as ressalvas citadas anteriormente, todavia, surge outras implicações sobre a temática: na impossibilidade de aplicação dos institutos previstos no art. 393, a pandemia pode ser caracterizar em outras teorias excludentes de responsabilidade? Tendo em vista a complexidade e as implicações da crise sanitária, bem como as especificidades de cada caso concreto, alguns autores defendem que em certas situações caberia ainda a alegação da teoria da imprevisão ou a onerosidade excessiva. [6]
Essa primeira teoria está prevista no Código Civil com a seguinte redação:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.Nota-se que a teoria da imprevisão ocorre principalmente nos contratos de prestação sucessiva ou a termo, os quais, por algum acontecimento imprevisível e inevitável, pode sofrer modificações significativas na relação contratual. Além disso, ela tem grande relação com a conhecida cláusula rebus sic stantibus, que significa “enquanto as coisas estão assim”, estabelecendo que “o vínculo obrigatório ficará subordinado, a todo tempo, ao estado de fato vigente à época de sua estipulação.”[7]
Já a segunda teoria, nos termos do art. 478 do Código Civil, dispõe que:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Nesse sentido, apesar da presunção de equilíbrio contratual no início do pacto, é possível que acontecimentos extraordinários e imprevisíveis alterem substancialmente essa estabilidade primária, gerando encargos excessivos para uma das partes e inviabilizando a continuidade da relação. Tal situação encontra amparo no código civilista, sendo uma forma de resolução contratual.
Nesse diapasão, o que se pode perceber é que, a depender das disposições específicas de cada contrato neste contexto pandêmico, o inadimplemento pode ser analisado de uma maneira diferente. Por essa razão, não há o que se falar em um entendimento aplicável a todos as casos de forma igualitária no que tange a excludente de responsabilidade, nem os casos de revisão ou rescisão contratual, pois, como preleciona Flávio Tartuce “o ponto de partida deve ser sempre cada relação contratual em sua individualidade. É preciso, antes de se qualificar acontecimentos em teoria, compreender o que aconteceu em cada contrato.” [8]
A crise pandêmica, por óbvio, é uma situação excepcional e gerará, consequentemente, efeitos variados nos ramos do direito civil. Frente a isso, o que deve ser considerado, apesar do Código permitir a resolução ou a revisão contratual, bem como apresentar hipóteses de excludentes de responsabilidade, é a manutenção do pacta sunt servanda, vez que há uma presunção da força obrigatória no cumprimento dos contratos. Além disso, o entendimento que prevalece é que os efeitos decorrentes da pandemia deverão ser analisados no caso em concreto, devendo as partes primarem pela negociações, pela boa-fé objetiva, pela mútua cooperação e lealdade (art. 422 do CC), assim como pelo princípio constitucional da solidariedade social (art. 3º, I, CF), com vistas a enfrentar essa situação adversa com consciência e cautela.
REFERÊNCIAS:
[1] GAGLIANO, P. S., PAMPLONA FILHO, R., Novo Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil 3., 15ª ed., vol. 3, São Paulo: Saraiva, 2017.
[2] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 35ª ed. - São Paulo: Saraiva Educação, vol. 3, 2019.
[3] cf. GAGLIANO, P. S., PAMPLONA FILHO, R., Novo Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil 3., 15ª ed., vol. 3, São Paulo: Saraiva, 2017, p. 117-200 e
TARTUCE, F. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. 12ª ed., vol. 2, rev., atual. e ampl.. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 715-738.
[5] Para mais detalhes, cf. REsp 1.450.434 - SP).
[6]https://www.mazzuccoemello.com/covid-19-consideracoes-sobre-forca-maior-imprevisibilidade-e-onerosidade-excessiva/
[7] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 35ª ed. - São Paulo: Saraiva Educação, vol. 3, 2019.
[8]https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322357/devagar-com-o-andor-coronavirus-e-contratos-importancia-da-boa-fe-e-do-dever-de-renegociar-antes-de-cogitar-de-qualquer-medida-terminativa-ou-revisional
Comments