A RESPONSABILIDADE CIVIL DO GESTOR PÚBLICO DURANTE A PANDEMIA
- observatoriojuridico
- 31 de ago. de 2020
- 8 min de leitura
O presente artigo versará a respeito dos pontos controvertidos em relação a possibilidade de se responsabilizar os gestores públicos do executivo (Governadores, Prefeitos e Secretários) na esfera cível por ações tomadas durante a pandemia do COVID-19.
BREVES CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA LEI N.º 13.979/2020
Clarificado o objetivo, o ponto de partida será a Lei n.º 13.979 de 6 de fevereiro de 2020. A lei ficou conhecida Brasil afora, que dispôs sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Esta lei abriu algumas brechas para a má gestão, especificamente em seu Artigo quarto, que transcrito, diz:
Art. 4º Fica dispensada a licitação para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei.
§ 1º A dispensa de licitação a que se refere o caput deste artigo é temporária e aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
§ 2º Todas as contratações ou aquisições realizadas com fulcro nesta Lei serão imediatamente disponibilizadas em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (internet), contendo, no que couber, além das informações previstas no § 3º do art. 8º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, o nome do contratado, o número de sua inscrição na Receita Federal do Brasil, o prazo contratual, o valor e o respectivo processo de contratação ou aquisição.
A intenção do legislador, apesar de nobre, que redigiu o código a fim de dar celeridade aos processos de compra de serviços e insumos pelo poder público, abriu margem para que os órgãos de controle, que foram criados para manter as contas públicas nos eixos, não operasse em sua plena capacidade. Um exemplo disso são as diversas notícias que circulam a respeito dessas irregularidades. Num balanço realizado pelo jornal “O Globo” no mês de agosto de 2020 apurou que 5 Secretários estaduais já foram alvos de operações da Polícia Federal. Foram alvos de mandados de busca e apreensão os secretários do Rio de Janeiro, Pará, Santa Catariana, Amazonas e Distrito Federal. Isso levanta uma questão importante: Até que ponto o art. 4º da Lei n.º 13.979/2020 é benéfico para a sociedade?
A RESPONSABILIDADE CIVIL POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
A fim de delimitar o objeto do estudo, as situações fáticas serão analisadas apenas do ponto de vista cível. E nisso, certamente cabe a responsabilidade civil. Como é manifesto, a definição de responsabilidade civil pode ser simplificada na esfera dos danos emergentes e dos lucros cessantes. Os danos emergentes podem ser definidos como o valor pecuniário que determinada conduta custou, e os lucros cessantes, o valor que poderia ser auferido caso aquela determinada conduta não fosse realizada. No âmbito da improbidade administrativa, a fim de simplificar o raciocínio, será tratado apenas a respeito dos danos emergentes.
Na lei da improbidade administrativa (Lei n.º 8.429/92), esta é definida através de seu art. 9°, que constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente [...] [O código mostra, em seguida, lista de condutas que são criminosas]
Como a responsabilidade civil busca reparação de danos, por conseguinte, o gestor ímprobo será eventualmente condenado a reparar esses danos ao erário. Segundo doutrina do Professor Reinaldo Federici, a responsabilização civil por improbidade administrativa deve se restringir ao ato praticado com dolo ou culpa grave e/ou que tenha produzido dano ao erário público! Há que se perquirir, inicialmente, todas as circunstâncias fáticas do ato ímprobo e a real participação de cada agente administrativo/público envolvido ou acusado. Ou seja, de nada adianta responsabilizar todos os envolvidos de forma igualitária. Não se pode responsabilizar um mero estagiário que assinou um documento da mesma forma que se responsabiliza um secretário de saúde que mentalizou uma cadeia inteira de corrupção, por exemplo.
Contudo, essas ações costumam demorar muito, e a responsabilização poderia ser prejudicada pelo instituo da prescrição. Sendo assim, o STF através do julgamento do RE 852475 em 08 de agosto de 2018, declarou por 6 votos favoráveis a 5 contra que as ações de ressarcimento ao erário por improbidade administrativa são imprescritíveis. O Ministro Luís Roberto Barroso disse acreditar que a prescrição "não produz o melhor resultado para a sociedade". Segundo ele, as ações de ressarcimento demoram por causa da complexidade das investigações e da demora do processo penal. “É preciso entender que o ressarcimento ao erário não é sanção. Devolver o que não deveria ter tomado, não é sanção”. Sendo assim, conclui-se que a responsabilidade civil por improbidade administrativa, mesmo que tardia, conta com portas abertas.
Em síntese, a responsabilidade civil por dano ao erário merece ser reparada, mesmo que de maneira tardia, visto que existem exceções específicas para o caso, e muitas demandas do tipo surgirão após a pandemia do COVID, como já tem surgido ações do tipo por parte do MPF, MPE e até mesmo da população.
A AÇÃO POPULAR NA FISCALIZAÇÃO DOS GASTOS PÚBLICOS
Durante a pandemia, o instituto da ação popular tem grande potencial fiscalizatório. Regulamentado pela lei n.º 4.717, de 29 de junho de 1965, a ação popular conta como objetivos questionar judicialmente atos lesivos ao patrimônio público, bem como à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. De acordo com o inciso LXXIII, art. 5º o autor fica inclusive isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência (valor que a parte paga ao perder uma ação em juízo). Ora, com todas essas facilidades, o número de ações populares deveria ser expressivo, contudo, a realidade é distante de tal pensamento.
A ação popular não deve ser confundida com Ação Civil Pública, esta regida pela Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985, que pode ser proposta pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pela União, os estados, municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista e associações interessadas, desde que constituídas há pelo menos um ano.
Frequentemente, existe o hábito de imputar às instituições o dever de fiscalizar os poderes existentes, principalmente ao Ministério Público. Contudo, há diplomas expressos desde 1965 e na própria Carta Magna que buscam facilitar a participação cidadã no controle das atividades desempenhadas por aqueles que ocupam o governo, principalmente na esfera legislativa e executiva. Como consta no diploma legal, as exigências para se propor uma Ação Popular são pífias, e seus resultados são excelentes.
O Ministério Público, apesar de bem aparatado, não consegue analisar todos os contratos e licitações do País inteiro.
Um exemplo de Ação Popular que cumpriu seu papel ocorreu em Minas Gerais, proposta pelo Auditor Fiscal da Receita Estadual, Lindolfo Fernandes de Castro. Em breve síntese dos fatos, o Governo Mineiro contratou em 25/08/2016, através do contrato n.º 1900010713, uma empresa para prestar assessoria e consultoria contábil ao Estado, através da modalidade de dispensa de licitação (modalidade essa excepcionalíssima, como será discutido em breve) e sem constar o parecer da Advocacia Geral de Minas Gerais no processo de dispensa, requisito indispensável para que o processo administrativo seja legal.
Além das ilegalidades, alegou o autor que os funcionários de carreira das mais diversas áreas poderiam suprir a demanda sem onerar ainda mais os cofres públicos, porquanto já são remunerados para cumprir este papel. O processo, ajuizado em 24/04/2020, teve sentença prolatada 27 de julho de 2020. Como visto anteriormente, é mormente o ato lesivo ao patrimônio e uma afronta ao princípio da moralidade pública. Por conseguinte, o juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública de Belo Horizonte, além de declarar nulo o referido contrato, determinou a devolução da pecúnia auferida indevidamente. Como percebido, o autor que é auditor fiscal do Estado, ao invés de formalizar uma denúncia no MPMG como seria o normal, optou por ajuizar uma ação em nome próprio para anular ato lesivo. Não como funcionário, mas como cidadão.
A AÇÃO POPULAR DURANTE A PANDEMIA EM CUIABÁ
Passada a análise preliminar a respeito da ação popular e de como ela funciona, a fim de também cumprir com o papel do observatório jurídico-civil, que tem como missão observar e reportar as peculiaridades ocorridas em solo Cuiabano, será analisado o caso da dispensa de Licitação n.º 030/2020/PMC, contida no processo Administrativo n.º 35.605/2020.
O objeto da demanda foi primeiramente percebido através da veiculação na mídia local do programa “Cuidando de quem cuida da gente”, promovido pela prefeitura de Cuiabá. O objetivo do programa era oferecer assistência psicológica e psiquiátrica aos servidores da saúde municipal que se sentissem afetados pelo COVID-19 em eventuais distúrbios psicossomáticos.
Sendo assim, foi criado o referido processo de dispensa de licitação, para que o poder executivo pudesse viabilizar o projeto. A dispensa de licitação para o presente caso é permitida através do art. 24, III e IV, senão vejamos:
Art. 24 - É dispensável a licitação:
III - nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem;
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;
Como a atual pandemia contém grave perturbação da ordem e contém caso de emergência, a dispensa seria uma das maneiras de sanar o problema. Entretanto, duas coisas chamaram a atenção na referida dispensa: O valor do contrato e o fato de não ter havido pesquisas de preços. Como é “conhecimento popular”, uma contratação direta tem que ter no mínimo, pesquisa de preços com 3 fornecedores diferentes para o referido produto (O TCE-MT emitiu parecer recentemente recomendando mais de três, mas isso é assunto para outro texto). Contudo, nem isso houve. A Secretaria Municipal de Saúde, enviou e-mail a apenas duas empresas: A vencedora e um consultório que funciona dentro da Universidade do Porto, em Portugal (Semelhante ao Centro de Atenção Psicossocial da UFMT). A outra empresa consultada sequer respondeu o e-mail, logo, o processo de dispensa de licitação conta com somente uma cotação de preços.
Outrossim, o valor de R$ 1.250.000,00 (Um milhão duzentos e cinquenta mil reais) chama muito a atenção. Em uma discriminação de gastos, o contratado alegou que gastaria R$ 330.000,00 (Trezentos e trinta mil reais) somente com a plataforma EaD para educação dos profissionais. Em breve pesquisa realizada pela internet, podemos constatar que o preço de tais plataformas gira em torno de 2 a 5 mil reais o serviço completo.
Diante de tais motivos, um grupo de amigos de um escritório de advocacia ajuizou uma Ação Popular visando anular o referido contrato. Diante dos diversos vícios insanáveis do processo, teve liminar deferida pela vara especializada em ação civil pública e ação popular. O Juízo apontou, inclusive, que “a dispensa de licitação não constitui carta branca para contratação descriteriosa ou contrária ao interesse comum. ”
No grave colapso sanitário em que vivemos, onde cada real conta como um insumo para salvar a vida de alguém ou proteger a vida de um profissional da saúde, aplicando o dinheiro de maneira eficaz, uma simples verificação pública, com uma investigação superficial do fato feita por cidadãos comuns, sem qualquer poder especial, resultou em uma economia de mais de um milhão de reais para os cofres públicos!
Em que pese a justificativa da Assessoria de comunicação da Prefeitura em afirmar que o contrato é perfeitamente legal com fulcro na 13.979/2020, a LIA não deve jamais ser descumprida, e os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade que constam no referido diploma devem ser respeitados independentemente da situação.
Em breve síntese, resta demonstrado que a Ação Popular é um instituto que deve ser utilizado com mais frequência do que de fato é. A Carta Magna já diz, logo em seu Artigo primeiro, que todo poder emana do povo, e confere diversos meios para que este poder seja exercido. Seja através de um observatório jurídico, ou apenas diante da indignação de cada cidadão frente as irregularidades diárias com o orçamento, é um direito de cada um mover o judiciário por aquilo que acredita, para preservar aquilo que é público. E tome-se nota, público não é aquilo que não é de ninguém. Público é aquilo que é de todos. E a democracia é, em essência, pública!
REFERÊNCIAS:
7- Número do processo mencionado: 1031100-49.2020.8.11.0041 (APop Dispensa de licitação)
Comments